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quarta-feira, 1 de julho de 2015

A rapariga da vara…E o "sarrafo vermelho"

Textos e pretextos

a deusa da alegria ..img. net
  A rapariga da vara…
E o "sarrafo vermelho"





Ser austero é não saber esconder que se tem pena de não ser amado. .Fernando Pessoa



Era o tempo em que a Natureza se veste de verde.
Um verde orvalhado pelas gotas de chuva que  brilham como pérolas quando o sol desponta.
De quando em vez , uma bátega de água caía sobre os jardins agradecidos e as pessoas constrangidas.
Ou não fosse Abril de águas mil.

Ela chegou ao colégio já a classe cursava o terceiro período. Naquele tempo, após a quarta classe, havia um exame de admissão ao Liceu.

Na primeira semana Maria integrou-se facilmente. A professora logo se apercebeu das facilidades que revelava na apreensão dos conhecimentos. Tudo isto com a maior simplicidade.

Cedo começou a ajudar as colegas com mais dificuldades, a pedido da mestra. Ela até gostava . Tudo era natural. Já na sua escola, estava habituada a acabar os trabalhos antes das outras alunas e a professora pedia-lhe para dar uma mãozinha à Mécia. À Helena. À Júlia…

Nos trabalhos de casa , via as contas das que tinham menos facilidade. Em troca, as colegas davam-lhe um “Santinho” ou até fruta e outras ofertas de gratidão pelo trabalho prestado.

-Ó Maria , vês-me a minha conta de dividir que eu dou-te um Santinho?

-Ó Maria, deixas-me copiar os problemas que não fui capaz de fazer o trabalho de casa?

 A Senhora dá-me uma reguada, se me chama e não fiz isto.
O medo morava naqueles corações pequeninos e aflitos.
Maria nunca dizia que não.

Como a professora tinha as quatro classes e tinha que chegar a todos os alunos numa sala cheiinha, quando passava no quadro o enunciado da conta e se copiava para a lousa, a aluna que acabava primeiro , ia mostrar-lhe.
Por vezes quem acabava primeiro, levantava-se no lugar. Aguardava que a Senhora lá fosse para não haver confusão na sala...
A menina que primeiro resolvera o trabalho, ia depois de carteira em carteira, ver as contas das colegas.Havia alunas que nunca conseguiam acertar.

-`Coisinha, perdoa-me a conta que eu dou-te uma laranja.Um Santinho. Um postal…

Na maioria das vezes, o pedido era atendido. 
Quando o prazo expirava e se fazia a correcção no quadro, quem não apresentara a conta feita antes e certa , levava umas tantas reguadas que deixavam a mão vermelha e bem dolorida.

Algumas meninas choravam sempre. Outras levavam todos os dias, até se habituavam. Quando voltavam para o lugar, sopravam nas mãozitas vermelhas.Magoadas.

Ficavam humilhadas. Envergonhadas. Tornavam-se tímidas ou revoltadas e mázinhas, algumas delas..
O "sarrafo" vermelho era grosso!

No final, esgotado o tempo, a correcção fazia-se no quadro. Todas conferiam.Viam onde é que tinham errado, algumas.
Outras ficavam para trás.Para sempre.Chamavam-lhe com crueldade, "burra"… Havia alcunhas ainda mais cruéis, tais como “a porca suja”.
Houve um tempo que de castigo tinham que se ajoelhar sobre milho. Trazer umas orelhas de burro, no recreio.

Já havia muita inveja. Raiva. Vinganças entre as crianças…

Revelavam-se ali modelos familiares.

Desenhavam-se assimetrias sociais marcantes. 

Os que tinham dinheiro. Poder e orgulho e os mais pobres que levavam sempre pancada…A clivagem começava cedo logo na escola. 

Havia da parte de algumas meninas , normalmente filhas de comerciantes com mais posses,muita arrogância.
Sendo menos dotadas , não perdoavam o desempenho rápido e fácil das mais inteligentes. 
Nos intervalos batiam-lhes.Acusavam injustamente essas colegas à professora para apanharem com o "sarrafo "vermelho.Ficavam todas contentes.Consoladas.Eram poderosas!

Na Escola, a professora escolhia uma das mais velhas para ir para a frente da classe, ver quem estava a falar...Enquanto  ocupada,  ensinava a outra classe.Era o momento da maldade tomar forma.

-Fulana , vai ver quem está a falar.-Ordenava a professora

Então uma das mais velhas.Gorda.Antipática. Munida de uma grande vara que a mestra também usava  para dar nas orelhas e na cabeça das alunas, ficava à frente da classe. 
As mais pequeninas ficavam cheias de medo. Aí era a hora da vingança cruel .Injusta e mentirosa. A raiva  e a inveja tinham oportunidade de se  vingarem.

-Maria , vai à Senhora!

E pimba.Uma reguada com o "sarrafo" vermelho. Castigo imerecido.Cruel.A pequena assustada nem se mexia na carteira.Nunca estava a falar.Era a melhor  aluna. Esse era o seu crime. Nunca apanhou por não saber, então :”Toma”!

-Vai à Senhora, outra vez!

Não havia apelo. A professora estava  muito ocupada . Não tinha tempo  a perder.A justiça ou injustiça do castigo nunca a preocupava .Não tinha tempo para essas coisas menores (...).

E a aluna gorda de casaco castanho. Comprido.Com uma gola às pintas a imitar a pele de pantera, aproveitava.Era a hora da crueldade. Da vingança. Da inveja em acção, com todos os poderes do seu lado! A lei do mais forte era o modelo social vigente.

O Soldado da Gestapo, "polícia secreta do Estado".(1) estava ali bem representado na aparência e no comportamento daquele espantalho temido e investido de autoridade.

Apontava o nome dessas meninas no quadro. No final era o acerto de contas… Mais umas reguadas com a "sarrafo" vermelho. Grosso.Impiedoso.

No início, as classes eram separadas. As meninas ficavam todas numa sala com uma professora. 
Do outro lado do edifício, ficava a sala de aulas dos rapazes, dadas pelo Senhor professor. 
Um homem baixo.Sempre de gabardina. Chapéu preto.De voz metálica.Passava sempre com ar de poucos amigos, sem olhar para ninguém...Quando falava, o “caroço de Adão” muito saliente, quase saltava do pescoço.Todos o temiam.

Havia num alpendre entre as duas salas. Era proibido as meninas irem para o lado dos rapazes e os rapazes virem para o lado das meninas.

Mais tarde houve um desdobramento de classes. E coisa única, a classe agora era mista.

Aí havia um menino, o José António, que quando a situação apertava, fazia “xixi” nas calças com medo…

A impiedade da criançada não perdoava e ele sofria muito.Quando levava com o "sarrafo" vermelho, era uma ribeira que corria sob a carteira.Toda a gente depois cá fora, lhe chamava o “Chorincas e o Mijado”.Normalmente ele fugia.Escondia-se.

Maria lembra-se de todos os pormenores como se um filme passasse à sua frente com uma exactidão impressionante. Como se tivesse sido ontem.

Ou não fossem as leis da memória fiéis aos acontecimentos  mais recuados…

Maria seguiu o seu caminho com coragem e muito trabalho!
Compreendeu cedo que “O melhor modo de nos vingarmos é não nos assemelharmos a quem nos faz  mal”

Foi esse o caminho que escolheu, ao longo de toda a sua vida.
Ao falarmos com ela, diz se uma pessoa feliz!. 
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 Nota:“ A Gestapo nasceu em 1933 para esmagar a oposição a Adolf Hitler e logo se transformou na peça central do terror nazista. Com a ajuda de cidadãos comuns, a Gestapo vigiou, sequestrou, torturou e executou milhares de pessoas”




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