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segunda-feira, 23 de novembro de 2009

A casa abandonada


A Casa abandonada

- História de uma casa –


Na encosta do pinhal, com um peso imenso de eucaliptos e tojos a caírem-lhe nas costas, a casa abandonada geme e sofre.
Parte das suas paredes já ruíram.
As heras invasoras cobriram a vergonha do abandono.
Primeiro, a medo, infiltraram-se nas fendas.
Depois foram-se assenhoreando de todo o espaço.
Hoje, uma manta de verdes, como retalhinhos de diferentes tonalidades da cor dos prados, enchem todos os espaços do que antes albergara alfaias e animais.
Parte da estrutura da velha casa de estreitos janelitos, ainda resiste ao tempo e à solidão.
- Vamos construir uma casita ali na encosta – dizia Tomás à namorada, nos dias de sonho, ainda solteiros.
- Ó Tomás, gostava mais perto da minha mãe. Ali, parece-me um pouco isolado.
- Tá calada Teresa.
Estamos à vontade .
Ali ninguém nos incomoda. A criação anda à solta. Temos a ribeira em baixo. Bate-nos o sol todo o dia. Estamos e temos tudo, à nossa maneira . Como Deus com os anjos.
- Vamos vendo por outros lados também, se não te importas.
- Está bem. Podemos ver, mas aquela leira que o meu pai nos dá, para começo de vida, valia a pena.

O namoro foi avançando, Teresa ficou grávida. Casaram um pouco à pressa. Era uma vergonha, se alguém percebia que a Teresa não ia virgem para o casamento. O falatório não perdoava.
- “Em vez da flor da laranjeira, aquela já leva as laranjas para a igreja”.- pairava no ar, à boca fechada…
E a coisa apressou-se.
Teresa perdeu todos os privilégios. Agora, só queria era salvar a sua honra. Não arranjar problemas para os seus pais que eram pobres, mas gente muito honesta.
Teresa não queria ser a vergonha da família.
O pai punha-a logo fora de casa.
No melhor pano cai a nódoa, mas o povaréu não tem contemplações.
E… um homem que se presa tem vergonha na cara.
A escolha de Tomás foi avante.
Já não havia calma, nem ambiente, nem tempo a perder.
A casa foi feita na encosta, à entrada do Porto da Vila.
Um homem quando casa, já tem que ter a sua casa.
Quem casa, quer casa, dizia Tomás para Teresa.
Entre os dez irmãos de uma família pobre e muito trabalhadora, a casa começou a avançar. Os carros de bois chiavam logo às cinco da manhã, acarretando pedras, cal, barrotes, telhas para a nova casa do filho do ti Bernardo.
- Ó Tomás, vocês ficam ali com um palácio!
E ninguém vos incomoda, naquele sítio. Livras-te de chatices. Ficas ali com a Teresa, sem ninguém se meter na vossa vida.
Depois , tens água para os mimos, lá na ribeira. Tens lenha para o lume, logo atrás da casa. Roças uma carrada de mato e estrumas a terra. -- Boa escolha - dizia-lhe o Nando, o irmão mais velho. E pronto.
Um quarto para os noivos, uma sala, outro quarto de costura e mais um quarto para o cachopo, quando nascer.
Por baixo, ficava a cozinha, a loja e a despensa. Ao lado, o pátio com os animais e um canto para o cão e para as ferramentas.
- A nossa casa é linda. O meu enxoval aqui até brilha, ó Tomás.
O casal lá se acomodou com os seus poucos haveres. Foi preciso comprar tudo aos poucos; os cântaros de barro, os candeeiros a petróleo, as louças, os bancos, uma mesa…
A casa sentia-se feliz:
_ Que bem me sinto. Que feliz sou com este casal amigo abençoando as minhas paredes. Se me caiassem ainda ficava melhor… Mas tenho de esperar.
O menino está quase a chegar… talvez depois.
- Uaá…uaá…uaá…
Cheguei. Sou o primeiro filho do Tomás e da Teresa. Venho enriquecer esta casa - dizia o bébé na sua linguagem, que a casa bem percebia.
É que as casas também têm uma alma. A alma desta modesta casinha era pura e lavada pela encosta da serra. Desinfectada pelo odor dos eucaliptos que a rodeavam. Embalada pelo som da água do ribeiro, cantando dia e noite, nos penedos que penetrava teimosamente sem parar, sempre correndo.
No inverno a casinha lamentava-se:
- Com esta ventania tão agreste, quase ficava despenteada e sem telhas. Ia tudo pelo ar. Que susto.
No verão, aqui virada para o sol na encosta, até estalo por todos os lados.
Se o fogo pega na floresta, que será de mim?
Que será da família que abrigo e protejo?
- Na primavera, consolo-me no meio dos fetos e dum solzinho doce que me aquece sem me magoar.
No Outono, também não é mau. Cá do meu canto, admiro as árvores carregadinhas de frutos.
No Natal e nas festas, até me assusto. Estou habituada ao silêncio.Com a matança do porco, que grande alvoroço! O animalzinho a chiar aflito, logo pela manhã, é que me faz estremecer de pena pela sua dor…Os homens, num grande alvoroço, fazendo festa à volta daquela morte. Que estranhos são os humanos! Até comem os seus amigos. Durante não sei quantos meses, conviveram com o seu porco. Agora espetam uma faca certeira no coração do pobre animal! E estão todos contentes!
Até deitam foguetes!
Mas o que eu mais gosto, é sentir-me útil.
Quando a minha dona esfrega o chão com sabão amarelo e aquela grossa escova, fico toda a cheirar a lavado.
Uma vez por ano, quando se muda a palha do colchão, o cheiro e a frescura dos cereais, inebriam-me a alma.
A casa da encosta aquando da sua construção, sentia-se jovem e muito amada.
Foi passando o tempo e continuava em pleno vigor, abrigando o casal, e os filhos que foram nascendo: quatro rapazes e três raparigas.
Já não havia onde meter tanta gente, mas todos se acoitavam nela, quando a noite caía de mansinho.
Durante o dia, pouca companhia faziam à casa da encosta. Os rapazes e as raparigas foram crescendo.
Cedo os rapazes começaram a namorar. Pensavam construir o seu ninho. Ali à volta, ou na terra da rapariga, ergueriam a sua casita.
As raparigas também partiram cedo, quase todas.
Umas casaram. Outras foram servir.
O Tomás e a Teresa, cansados, velhotes, foram ficando sempre fieis ao seu amor, à sua rotina, aos seus animais, à sua casa da encosta.
O velho Tomás era muito trabalhador. Pachorrento e de boas falas. Teresa era muito “trabalhadeira”, nervosa. Amiga dos animais e das flores.
A casa perfumada de flores, era um ninho de amor.
A casa da encosta gostava de se ver enfeitada, mas já se inquietava por ouvir gemer os velhotes sozinhos. Isolados.
A chuva entrava no telhado. Não havia quem compusesse nada. Subir para o telhado, o velho Tomás já não podia. Os filhos todos tinham partido.
Teresa punha uns alguidares a apanhar as beiras, porque chovia em casa como na rua.
O tempo implacável ameaçava. Não perdoava.
Um dia triste e sem sol, veio a senhora da morte e roubou Tomás à sua Teresa .
Ela chorou muito alto, quando lhe levaram o seu Tomás para sempre, para o meterem num buraco cheio de água e bichos.
Ela que tanto amara o seu homem e o ajudara, sempre sofrendo ou rindo a seu lado, agora tinha que o deixar partir.
Ficou para lá sozinha. Sem força. Sem vontade para nada.
- Olha, filha, a tua mãe não tem ‘tramengo’ para nada.
- Ó mãe venha daí, para minha casa.
-Não quero, filha. Não quero abandonar esta casa que vos viu nascer a todos e nos abrigou sempre. Construímo-la com tanto sacrifício e amor. Há-de ser Deus, quem me leva daqui.
E lá fazia a sopita com a couve que crescia no quintal, mesmo sem ser plantada. Comia o caldo com o pãozito que lhe traziam os filhos e guardava numa taleiga, dentro do moinho. Comia umas sopitas de café e marmelada. Com pouco se alimentava. Rezava alto na sua casinha. Falava alto para uma imagem que tinha pregada na parede, por cima da cama , para afugentar a solidão e até algum receio de estar só.
Rezava ao seu Santo António. Pedia pelos filhos, pelos netos…serenamente.
Rezava o terço e adormecia em paz, na sua casinha da encosta.
Numa noite igual a tantas outras, deitou-se e nunca mais acordou. Lá foram dar com ela, com um ar sereno e calmo.
A casa da encosta ficou agora sozinha. Silenciou-se tudo. Até o bater da bengala da Teresa no sobrado, se calou.
Vieram os filhos e levaram tudo o que era melhor lá na casa. Lá repartiram em harmonia o pouco que havia.
Agora também a velha casa da encosta previa a sorte que lhe estava destinada: ficar ali ao abandono…
E assim foi…
As silvas, as heras, as aranhas, o pó os bocados de madeira que se ia desfazendo aos poucos, o barulho do caruncho roendo o resto das madeiras erectas, eram a sua única companhia
- Já nem sei quem sou. Será que ainda sou uma casa?
E o tempo ia correndo.
Até que um dia, alguém cansado da multidão, da vida agitada da cidade, do estrangeiro, se enamorou da velha casa da encosta.
- Aqui é que eu e a minha família, estávamos bem, tranquilos…
E noites a fio começou a sonhar com o seu “ palácio”, reconstruindo a casa da encosta, apenas mentalmente…
Criando os seus animais, falando com eles vendo-os crescer, plantando uma horta verde, colhendo os frutos sem pesticidas, respirando o ar puro dos eucaliptos ali à volta. Descansar à sombra na ribeira, nos dias cálidos de verão.
Aconchegar-se ao borralho, nas noites frias de inverno.
Viver o silêncio.
Sentir a calma.
Escutar a chuva a bater na vidraça.
Aconchegar-se sob as cobertas e sonhar com mundos de paz, de justiça e harmonia.
A sintonia com a velha casa da encosta, fê-lo sonhar e reviver tempos passados…
Contudo, a vida tem altos e baixos, agitação e calmaria.
O nosso amigo que se enamorou da casa da encosta, mudou o rumo da sua vida
Instalou-se a discórdia na família. Morreram todos os sonhos, mesmo antes de nascerem.
Aquele seu projecto não cabia nos novos planos.
Então num gesto de fidelidade e carinho saudoso, de vez em quando, vai visitar a velha casa da encosta.
Faz-lhe promessas:
Conta-lhe segredos que só os dois conhecem.
-Será que ainda vou ser feliz? Reconstruída?
Quem espera desespera… - pensa a casa da encosta, que fielmente vai resistindo a muito custo, com ainda duas paredes meio erguidas.
Continua esperando.
Ela sabe bem que o amor faz milagres.
- Quem sabe mais tarde ou mais cedo, alguém se enamora de novo de mim?
Diz baixinho, suspirando a velha casa da encosta, enquanto aguarda coberta de verde e de saudade, que alguém dela se agrade… e a ressuscite em beleza e esplendor Algo que encha a alma de um poeta ou artista sensível, ou simplesmente um eremita.
Aquela casa abandonada, faz me sempre pensar no ciclo das nossas vidas.
Quando viajo no meu país, ou mesmo no estrangeiro, fico muito atenta às casas abandonadas. Elas imploram baixinho, mas com tristeza abafada, a nossa atenção, o nosso tempo e o nosso amor.
Afinal, tal como as cidades e mesmo todos os países, as nossas casas, todas elas têm uma alma!
Escute-a nas noites de Inverno ou na alegria da Primavera e fale com ela. Ela, tal como tudo o que existe, gosta e precisa que a tratem bem!
Adora que lhe digam, sentindo:
-Minha linda casinha, gosto muito de ti, sabias?
E quem é que não gosta de ser bem amado?
Seja muito feliz na sua casinha.
Faça dela o seu ninho de amor em qualquer circunstância da sua vida.
Assim casa e dono, serão bem mais felizes.