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quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Um crime quase perfeito







Um crime perfeito



A natureza dá-nos cada lição!
O homem insensato e cruel lança-lhe o fogo, quer por interesses inconfessáveis, quer por desequilíbrio, quer por ignorância, quer por maldade pura.
Ela, generosa, indiferente a tanta malvadez continua a perfumar o ar empestado pelo queimar de motores roncando a toda a hora. Ficamos surdos e de pulmões entupidos. Ouvir a passarada, já nem pensar.
Hoje, quase me senti envergonhada , ao aspirar o perfume das flores amarelas e brancas que ladeiam as auto-estradas na Primavera, em Portugal.
Do mesmo modo, os amanheceres raiados ora de cores fulvas, ora duma suavidade sem igual lá estão quase todos os dias, enchendo de luz o Planeta das correrias, competição, guerras, maldades e muito muito poder furioso e cheio de orgulho.
Há felizmente ilhas de amor. Muitas ilhas!
Gente de primeiras águas que honra a Palavra e não se envergonha de ter valore – o que nos dias de hoje vai sendo excepção, porque o que está errado passou a ser regra e todo o resto, é estranho, confuso e desconhecido para a maioria……………………………………………………………………………...Esta força teimosamente generosa e perfumada duma Natureza-mãe que perdoa e faz crescer as mãos assassinas , é testemunha dos mais ignóbeis e inconfessáveis crimes .
O interessante ainda, é notar como o imensamente mínimo é regido pelas mesmas leis do imensamente incomensurável.
Tudo interligado se repetindo e continuando.
A mesma força deste verde sem fronteiras, da beleza que rompe entre penhascos e nos abismos mais profundos, é igual à que se esconde no coração dos que amam a vida, a coerência, o desejo de partilha.
Toda esta força emana da mesma Fonte!
José Maria fora parar ao Seminário ainda menino, nem ele sabe bem como.
Foi crescendo intelectual e espiritualmente.
Sentia-se bem com Deus, com os outros e com ele próprio. Era coerente. Integrou-se.
Defendia a justiça, a paz, o amor, a alegria, a solidariedade. Penetrou profundamente na Palavra! Era isso que a sua alma sem folhos, sem arrebiques, nem segundas intenções, sem interesses marginais, sem necessidade de salvar aparências, era tudo isso que bebia nessa Cristo vivo. Condoído. Inteiro. Puro e sem mácula. Cheio de compaixão por todos.
Os Evangelhos estavam impressos na sua alma de sacerdote de entrega total. Dedicação e entrega nunca foram coisas que lhe faltassem.
Cada paroquiano era irmão, irmão filho do mesmo Deus Maior em quem acreditava sem restrições. Ele acima de tudo!
E era este Deus Pai, bondoso, perfeito, presente no seu coração, que o fazia caminhar à chuva, ao frio, cansado, porque Ele fora o modelo…fiel até ao fim, no seu Filho muito amado que se dera por amor, proporcionando a mudança das trevas para a Luz.
Era a certeza desse amor que lhe enchia a alma e o corpo. Todas as células tinham a marca, o selo do Criador.
E porque ele sempre assumiu essa inteireza, essa totalidade – ele era a dádiva – por tudo isto, às vezes era mal interpretado.
O Povo adorava-o, mas … o poder, fosse de quem fosse (…) sentia-se incomodado.
O Padre José Maria nem dava por nada, tão envolvido estava no seu projecto de amor que envolvia, a maior parte das vezes, a promoção e a defesa dos marginalizados, dos mais abandonados.
Como um íman, que se atrai pelo sangue, o “Padre Zé Maria” era o Pai, o salvador dos sem voz que agora até se sentiam gente, lá naquele recanto do mundo, onde ninguém nunca aparecia, senão em épocas especiais para contagem de votos.
……………………………………………
Começou pelo Teatro aquele encontro entre o Padre Zé Maria e a povoação metida lá na serra mais escondida, a convite de alguém lá da Terra
O dia em que chegava o amigo, o irmão, o ensaiador, era a festa íntima de quem sente que tem ali o seu defensor, o professor , o amigo.
E assim se faz a festa!
Eram representadas cenas bíblicas, mas o mais importante é que no fundo de cada coração, se sentia o desejo de ser melhor, de partilhar, de se sentirem um, no todo. Cada um se sentia agora pessoa, pessoa livre. Já lá iam uns bons tempos, mas ele estava a ser observado…há já alguns tempos.
O Padre Zé Maria não dava importância. Caminhava de cabeça erguida, consciência em paz, leve e feliz. Reforçava todas as manhã com a oração matinal e no segredo do seu coração, louvava o Pai, por aquele encontro que Ele lhe permitiria, pois era isso que alimentava e gerava toda a energia amorosa que o empurrava para acção por mais exigente e difícil que fosse era esse sonho que o fazia viver.
Não possuía quase nada, senão o indispensável, porque a partilha dos bens materiais era o símbolo do que dava de si próprio: todo o seu tempo, dons e aptidões.
Naquele recanto do mundo, Zelica era uma aldeia isolada. Poucos transportes. Apenas uma vez por semana, passava uma camioneta velhota que levava os habitantes da aldeia à povoação mais próxima, sendo necessário naturalmente pagar o bilhete, o que dificultava ainda mais a vida… Há cinquenta anos, tudo era mais difícil entre nós.
O carro do Padre Zé Maria era o transporte preferido. Quase toda a gente aproveitava a boleia sempre que ele ia a Zelica. Ainda mais, porque se ia com o Amigo que todos queriam ver perto e do seu lado. Era um privilégio usufruir assim na companhia do Padre Zé Maria que durante mais de uma hora, era o tempo da viagem que os separava da civilização.
Nestas coisas sérias e verdadeiras dos afectos, seria tolice pensar em sexo ou outros instintos, fora do contexto.
Por que razão é que, seja quem for, homem ou mulher, jovem ou idoso, rico ou pobre, culto ou muito simples, não há-de apreciar, amar, sentir-se atraído por alguém que ama sem porquê, que é líder nato, que é bondoso, mesmo excepcional? As pessoas vêem os outros com aquilo que são. Até há quem ponha em dúvida o amor incondicional de Jesus Cristo forjando amores com uma mulher a quem perdoa os pecados, tal vai a mentalidade das nossas gentes.
Será que tem que se reduzir tudo o que é espírito à dimensão mais animal do ser humano sem possibi- lidade de transcendência?
..e lá se inventam as histórias. Algumas não são isentas de muito veneno…
-Olha, é homossexual…pedófilo. Traz miúdos no carro?!
-Olhem, traz velhos sempre atrás dele, porque lhes quer ficar com os bens…?!
-Aquelas boazonas no carro… raparigas novas com o sangue na guelra. O lume ao pé da estopa, até o diabo lhe “assopra”! Anda metido com elas, pudera!
-Anda com gente desqualificada, porque também pertence à ralé - comentavam os invejosos, aqueles que sentiam que o domínio lhes estava a escapar em favor de um padreco que julgava que vinha agora endireitar o mundo.
Era o que faltava, deixá-lo à solta. Ou entra nos eixos ou…limpa –se -lhe o sarampo! E não tarda muito. Já está a ir longe demais! - comentavam alguns irritados .
A história do Velho, o Rapaz e o Burro, há-de continuar a repetir-se até ao fim do mundo. Quem quer culpar o outro, recorda ainda a história do Lobo e do Cordeiro.”se não foste tu, foi o teu pai que sujou esta água”…A verdade é que o poder é cego: nunca olha a meios para conseguir os seus fins. Quem for tropeço, sujeita-se a ser liquidado, pois então.
Desta vez, era preciso estar bem atento!
Apanhar o Padre Zé Maria numa qualquer situação incriminatória, era urgente. Já estava a ir longe demais. Incomodava muito e a muitos que não estavam habituados, por aqueles lados tão pacatos, a ser contrariados por qualquer oposição. Todos a tirar o chapéu aos “salvadores”, aos senhores que sabem as leis…que sempre mandaram.
Mas aquele mesmo Povo agora amava de verdade o Padre Zé Maria. Identificava-se com ele. Compreendia tudo o que ele dizia .Sabia todo o Povo , daquele saber intuitivo que nasce no fundo do ser e que não engana, que o que ele ensi- nava era para crescimento de cada um, fosse quem fosse.
O povo de Zelica era todo a defender o Padre Zé Maria. A querê-lo a ele só. Já não acreditava no poder estabelecido e se fosse preciso, refilava e fazia ouvir a sua voz. Diziam mesmo alto e bom som e já sem os medos de outrora: “nós vamos falar com o Padre Zé Maria e depois logo se verá”.
- Mas quem pensa esse Padreco que é ?
-Deve estar à margem da hierarquia. É um herege. Os padres antigos sabiam dominar o Povo. Agora exorbitam as funções. Saem dos eixos
É preciso virar a Igreja, a Instituição contra ele, Urgentemente. Já fez muitos estragos.
Assim será mais fácil, o resto…
Sem saber bem o motivo, o padre Zé Maria viu-se envolvido em sérios problemas. Foi a sua pureza e inocência reconhecida pelos mais honestos e coerentes dentro da Igreja, que o defendeu, apoiou e acarinhou, não lhe reconhecendo qualquer culpa ao fazer do Evangelho, um programa de vida.
Por aqui, nada feito, meus Senhores!
- Há que encurralá-lo de qualquer modo. Os estragos estão a alargar-se.
-As pessoas estão a ficar escla- recidas demais. O Povo para obedecer, precisa de ter necessidades, não saber de mais e ter medos. Muitos medos!
- Basta saber ler, contar. O resto só serve para fazer confusão na sociedade. Só causa problemas.
……………………………………………
Aqueles respeitáveis senhores, intocáveis, impacientes, repetiam entre si:
-“se fosse no Brasil, isto já estava resolvido”- alvitrou um dos do grupo.
-Ah, parece que ele anda aí com uma rapariga que traz no carro muitas vezes.
-Uma namorada?!! O sacana do Padre vai ver como elas doem.
-Mas num padre …isso é inconcebível.
- Vamos tratar-lhe da saúde, não se preocupem.
-Mais depressa do que se pensa…
Temos mais do que razão para resolver a coisa…
-Foram observando e organizando as suas estratégias.
Entretanto o Padre Zé Maria continuava na sua tarefa. Na sua missão. Nada mudava, senão para pior.
O Povo cada vez seguia mais de perto o Padre Zé Maria. Dar a vida por ele, seria algo normal entre as pessoas de Zelica.
Ninguém acreditava na sua falta de honradez. Todos conheciam muito bem a categoria do amor incondicional do seu amigo.
-Espera lá , que nós já te dizemos como é.
Reuniram numa noite negra de chuvas e trovões que tudo encobre. Era dia de ensaio com o Padre Zé Maria, todos o sabiam , porque ele certinho e pontual.
Como de costume, o jeep do Padre Zé Maria fazia como sempre o mesmo percurso de regresso a casa, saindo das entranhas do abismo e penetrando na estrada estreita e si- nuosa.
Naquela noite, como em todas as outras, furava a montanha deserta, rompendo o escuro com os faróis aguçados no máximo para ver apenas um palmo à frente.
……………………………………………
- Sim. Sim .Ouvimos um estrondo terrível! - dizia aterrorizado um velhote , pondo as mãos à cabeça.
- Ai coitada da Lurditas,…tão boa rapariga , tão nova e que mal fez ela, meu Deus, para ter esta sorte ?Bocados de perna e de cabelo estavam mesmo aqui à nossa porta.
- Não é possível! – diziam cheios de desespero e de raiva contida , outros que chegavam correndo indiferentes ao tempo áspero que se fazia sentir na serra.
- Não acredito! O Padre Zé Maria não pode ter morrido! Aquele santo homem! O amigo do Povo!
- Uma bomba!!!! Mas quem é que podia fazer aquilo, se ele era bom para todos?!O jeep todo rebentado e feito em pedaços , ostentava pedaços de carne e muito sangue por todo o lado….................................................
Na sua simplicidade, o Povo interrogava - se e não conseguia perceber por que teria acontecido tal coisa uma pessoa tão boa.
- Teria explodido o motor?
Ao outro dia no jornal , lia-se .
“Ontem, cerca das 23 h, no Ladeira do Canado, ouviu-se um grande estrondo. Acorreram numerosos populares que testemunharam terem visto pelos arredores os corpos do Padre Zé Maria e de sua colega de grupo, a professora Lurdes, que minutos antes se tinham despedido , indo em direcção a Poços, onde, ambos residiam e para onde habitualmente se deslocavam no final das actividades que exerciam junto do Povo de Zelica.”
A notícia era curta sem comentários. Os caciques podem muito e era preciso ser prudente.
Comentava-se a medo, que alguém tinha posto uma bomba no carro do Padre Zé Maria.
Outros, entre soluços diziam:
-Nunca tivemos ninguém tão amigo como este bom homem!
-Mas quem pode fazer o isto!?
Alguém comentou, por entre dentes e quase a medo:
Teve o mesmo destino que Jesus Cristo que também teve coragem de enfrentar os que mandavam para defender os pobres e os oprimidos.
A sede do poder cega .
Há gente que cilindra tudo e todos para atingir os seus objectivos. Não olhando a meios para atingir os fins, Maquiavel continua a ser lido e posto em prática.
Todos os dias, por todo o mundo, se cometem barbaridades por causa da sede de poder.
…Também o Padre Zé Maria foi sacrificado em nome dos “sãos costumes”, por andar a sublevar o Povo, o mesmo é dizer, ensinar-lhe a ter dignidade, a saber fazer as suas escolhas e a viver com dignidade de ser humano, apto a fazer escolhas conscientes.
O outro também não dizia que”o Povo basta saber ler, escrever e contar”?
..Assim se comete um crime perfeito, impunemente.
Valha-nos a sagrada justiça.

À beira do Rio




À BEIRA RiO …
Enquanto a Mãe tricotava, o miúdo brincava com uma canita, na margem do rio
manso e calmo.
De repente, a cana prendeu-se!
A criança, com a curiosidade inocente de quem nada mais tem a fazer, que matar o
tempo que corre e imitar os crescidos, pescou primeiro... um sapato.
Toda a tarde a pescar e quando a cana prendeu, pensou ter pescado uma grande
truta... Um grande peixe dourado.
... Bom, era apenas um sapato velho!
... mas não desistiu e continuou a pescar. Prendeu-se a canita, outra vez.
Agora era um saco de viagem preto e vermelho.
Quis puxá-lo sozinho, mas não teve força.
Gritou então muito excitado e pediu ajuda à Mãe.
Quase tropeçava e era puxado para a corrente pelo peso enorme do “pescado”... É
que a corrente ía brava!
A Mãe, entre aflita e curiosa, correu a ajudar o pequeno.
Naquela tarde agradável de Primavera, com a terra perfumada, o céu azul e o rio
muito verde, era muito agradável aquele passeio já habitual à beira rio.
Nunca acontecera antes, nada de especial, mas hoje, um grande e bonito saco, ali
viera ter a seus pés.
Até era curioso o achado.
O saco sugeria viagens sem fim... Era tão jeitoso!
... mas, o saco estava tão pesado!
A corrente arrastava-o com alguma força e foi difícil pescá-lo.
... porém a curiosidade e o sabor de se ter um saco de ouro, que não era de ninguém,
e o sentimento de protecção para com o filhote, para lhe dar a vitória a Mãe a afzer
alguma força. Insistiu!
Por fim, lá veio o saco para a margem.
O pequenito apressado e curioso, insistia com persistência.
- Mamã, deixa-me abrir a mim!
Fui eu que o vi primeiro.
A Mãe sorriu com bonomia e deixou o menino satisfazer a curiosidade.
Mas... ó Deus! Que horror!...
Dentro do saco, estava... justamente um tronco de mulher.
... um tronco de mulher, vestido com um soutien vermelho.
“Que horror”! – repetia a Mãe, entre assustada e desconcertada com tal achado.
... o pequenito estupefacto só dizia
- Mamã, o que é isto?
- Mamã, Mamã, o que é?
Sem se conter, acaba por gritar.
- Cala-te! Cala-te! Cala-te!
Tentou depois dominar-se para acalmar a criança não menos assustada.
- Vamos embora João.
Deixa lá o saco.
A Mãe compra-te outro saco, ainda mais bonito.
O miúdo atónito, assustado, curioso e suspenso, deu a mão à Mãe e lá foram
embora... a correr.
Luisa foi pôr o filho a casa.
Pediu à Mãe que lho deixasse ficar um bocadinho com ela, que já voltava. Não deu
outras explicações.
Correu veloz para a polícia. Contou o sucedido.
Passado pouco tempo, o saco estava rodeado de muitos curiosos.
A notícia espalhava-se. Na pequena cidade alvoraçada, a notícia passava de boca em
boca.
Os mórbidos e doentios acorriam à beira rio.
Gostavam de ver com os próprios olhos.
Certificar-se daquela crueldade.
Teciam comentários. Conjecturavam.
... cada vez mais o estranho achado era motivo de comentários correndo de boca em
boca:
- ‘apareceram umas pernas de mulher dentro de uma mala, presa num salgueiro
do rio’.
Toda a gente muito assustada e indignada, esperava suspensa o deslindar da questão.
Bombeiros, polícias e militares procuravam sem descanso, o resto do corpo.
- É uma pouca vergonha.
- Estamos no fim do mundo.
- ... Já não há respeito por ninguém.
- Anda tudo fora da graça de Deus.
- Quem é que pode estar seguro?
Eram comentários que sussurravam no ar.
Por fim aparecia, numa outra mala de viagem, a cabeça de uma mulher jovem,
bonita.
Dava sinais de ter sido espetada no coração! Escoartejada.
- Crime passional?
- Ladroagem?
- Simples selvajaria?
- Ataque de loucura?
- Quem teria sido aquela infeliz rapariga?
- Qual o porquê de tão macabra sorte?
Dúvidas... hipóteses... pistas... sugestões surgiam na cabeça dos responsáveis pela
investigação.
Dois... três... quatro... cinco dias... uma semana, e a história seria deslindada.
O criminoso, um antigo militar dos comandos que servira na guerra colonial,
perdera a cabeça e...
... tinha sede de sangue!
... dava-lhe prazer afirmar o seu poder, deste modo.
... perdera a cabeça?
Ela era a sua segunda mulher.
Até “gostava” dela, à sua maneira. Dum modo sádico e egoísta, digamos.
... além do mais, não queria trabalhar. Vivia à custa da venda do corpo da sua
companheira.
- Até que a vida não ia nada mal... pensava para si mesmo.
Que raio lhe passara pela cabeça, para me chatear e dizer que me ia deixar?
A gaija vai saber o que lhe custa a proeza.
Não é para mim, mas também não será para outro cabrão – pensava o Júlio da Luisa,
conhecido no meio pelo estranho comportamento e visível agressividade .
Na noite anterior, tinham ralhado.
Insultavam-se muito com palavrões e barulhos esquisitos, confessaram mais tarde os
vizinhos.
- Aquilo eram só berros e gritos – diziam assustados.
- Era um casal enigmático. Ninguém ousava meter-se – “Entre Homem e
Mulher... ninguém meta a colher “ – diziam baixo, comentando entre si.
- Recordam de facto, que a partir de certa altura, caíra um grande silêncio, em
casa do Júlio e da Luisa...
A noite acabou por banhar todos, num sono profundo.
Luisa, essa então é que nunca mais acordaria!...
Entretanto Júlio, depois daquela operação violenta tinha que desfazer-se da
encomenda incómoda.
Depois de ter dormido calmamente o sono dos justos (?!!) acordava. Pensou então
que era melhor, viajar demanhã cedo.
Exactamente. Apanharia o primeiro combóio da manhã, quase vazio, habitualmente.
Às seis horas, as pessoas gozavam ainda o último sono da manhã...
Instalou-se sózinho, na última carruagem.
- Até calhava bem.
Quando passar na ponte sobre o rio, faria voar a encomenda... – pensava
calmamente, Júlio para si próprio.
Se bem o pensou melhor o fez.
Livrou-se depressa do mono que não mais o aborreceria. Naquele dia até
ficaria mais leve.
Ultimamente, Luisa andava adoentada. Parecia uma carraça.
... e o pior, é que trazia menos dinheiro para casa.
- Já não saboreava um bom bife e um bom vinho De marca há uma semana!
- Tenho que mudar de pega, que esta está a ficar fanada – pensava Júlio.
Naquele dia, pelo menos, tiraria a barriga de misérias.
Jantaria cabrito... bom vinho e o que surgisse no momento.
E não seria num ‘Mijacão’ qualquer. Seria num restaurante de gente fina!
... Um príncipe em festa.
Com o dinheiro no prego dos brincos, do relójio e do fio de Luisa, não faltaria
mesmo nada.
No fim, dava uma volta e toca de arranjar outro ‘cabide’.
- Aquela já lá vai e... não chateia mais – pensava para si.
- Mas a verdade, é que agora começava a incomodá-lo. A joelhada que ela lhe
dera nas ‘partes fracas’... ao tentar defender-se.
- A cabra, sabia-a toda.
... e agora esta merda está-me a doer cada vez mais – pensava Júlio.
Começou a prender-lhe a perna. Não conseguia andar com a dor cada vez mais forte.
- Agora é que estou quilhado – dizia para si.
Enquanto estive sentado, só uma dorzita, mas agora está a ficar fusco.
Parece impossível um gajo como eu, que arranquei e cortei tantas orelhas aos pretos,
com eles aos berros... etc... etc... etc...
Tanto filho da mãe que torturei até à morte e nada me aconteceu.
Um gajo mete-se com cada cabrona! Leva assim uma joelhada nos tomates... e agora
que vou fazer com esta porra tão inchada?!...
- Sentou-se no jardim. A coisa piorou. Foi aumentando.
Torcia-se com dores!
Rangia os dentes. Acabou por desmaiar de dor...
O polícia do giro, viu aquela criatura caída.
Não o conhecia. Viu no entanto, uma tatuagem de guerra colonial, na mão subindo
pelo braço já meio descoberto.
Apressou-se a chamar a ambulância que pouco demorara.
Levaram o cidadão sempre inconsciente para o hospital.
A equipa de serviço observou o paciente. Logo foi diagnosticada a pancada.
A cidade continuava desperta e... assustada!
O retracto reconstruído de Luisa, já circulava nos jornais.
Afinal o jornal diário da cidade, até primava por dar relevo a situações insólitas...
Toda a gente comentava o facto... o estranho e entranhado achado do saco intrigava
e assustava o povo pacato duma pequena e calma cidade de interior.
O Natal como o ‘diabo tem sempre uma mão com que esconde e outra que mostra’,
a vida também tem sempre uma parte oculta e outra descoberta!
No bolso do casaco do doente, chegado inconsciente, ao hospital, havia alguns
papéis engordurados e calendários com mulheres nuas e... outras preciosidades...
Entre a papelada , encontravam-se dois bilhetes de identidade. Um deles, com foto
de Mulher!!!
Então alguém, alertou imediatamente:
- Esta foto é semelhante à da mulher assassinada que vimos no jornal, não vos
parece?
- Toda a gente correra, para confirmar, negar ou satisfazer a curiosidade.
Entretanto, alguém alertara a polícia que de imediato levantada a ponta do véu
investigava até aos últimos pormenores, toda a situação.
O doente ia recuperando aos poucos...
... agora o resto, já não era só com o hospital e os cuidados médicos...
... agora o resto era com os homens do crime, habituados à pesquisa e à insistência
para apuro da verdade.
Nem terá sido preciso grande trabalho neste caso, certamente.
Não sabemos.
Só sabemos que mais tarde, ao tratarmos de assuntos de natureza social, num
determinado estabelecimento prisional, alguém nos mostrava um homem de meia
idade, que ria e fumava animadamente atrás de uma grande grade...
- ... ao menos ali, tinha quem o entendesse.
Até se aprende aqui uns truques.
Um gajo aqui não se preocupa mesmo com nada para viver. Tem comida... roupa
lavada... televisão...
... e se for preciso, faz-se greve... faz-se uma revolta... dá-se um tiro nos cornos do
polícia – comentavam certamente entre si os presidiários, conforme confessam
quando saem...
- Só falta serem tomados ao ombros, como salvadores da Pátria... uns ‘Heróis’.
Ou então como nos contaram, que dizia um advogado muito empenhado em pôr na
rua, toda a espécie de malfeitores:
- Quando vou para o julgamento, já sei que todos serão absolvidos...
O Juiz já tem com ele passagem e hotel pagos, para oito dias no Rio de
Janeiro... Êxito assegurado.
- Exagero deste diz-se, diz-se... acrescentamos nós.
- Coitados destes gajos que andaram na guerra colonial.
Ficaram todos ‘apanhados’ e marcados, pela violência...
- Ficaram é apanhados da moca – comentavam algumas pessoas que ainda se
recordavam do macabro acontecimento da mala e da rapariga assassinada e
cortada aos bocados...
- Há quem afirme que os mecanismos mentais desses ex-combatentes, ficam
muito perturbados para sempre...
Foi assim, que o João nunca mais quis ir com a Mãe brincar, à beira do rio...
... nem sequer quer ser curioso a abrir sacos... Tem medo. Muito medo!
... A Mãe, essa até se arrepia toda, quando se fala no saco vermelho e preto, que o
João pescou à beira do rio, uma tarde morna de Primavera.
Lucinda Ferreira