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sábado, 25 de julho de 2015

Viagem por dentro do tempo e do espaço. (Apontamento II)

Textos e pretextos


Viagem por dentro do tempo e do espaço. (Apontamento II)



A recordação é a esperança do avesso. Olha-se para o fundo do poço como se olhou para o alto da torre.





Enquanto fui criança e até ir para o Colégio, vivi com meus Pais, numa casa coberta de flores à beira da estrada “nova”, com se dizia na altura.

Tudo o que havia eram carreiros. Estradinhas térreas muito apertadas. Esburacadas, onde as carroças e os carros de bois se alagavam na lama.

Alguns desconhecidos paravam para fotografar a nossa casa, pela sua beleza e simplicidade.
Ainda conserva o registo número um, na conservatória!

Transformei-a um pouco, mas as flores ainda por lá andam, como não poderia deixar de ser.

O Pátio coberto de glícinias anunciava a Páscoa, altura de estrear uma roupa nova, como era hábito no lugar.
A sebe protectora da casa com um pequeno quintal era protegida por roseiras “picantes”, de um colorido variado e diferentes odores que se misturavam no ar.

Havia uma rolinha que cantava sem parar. Também tivemos uma Pega negra. Inteligente. Desconcertante que andava à solta e que roubava objectos à Mãe.
Tínhamos sempre um lindo gato. Quando estava velhinho ia para longe. Nunca mais voltava. Dizia-se que o gato quando estava velho desaparecia para longe para entregar a vida à terra. Longe da sua casa.

Num lugar sem qualquer distracção que não fosse o trabalho, viver à beira da estrada nova era desejável. Apetecível.

Impressionava toda a gente, a passagem rara de um carro. As pessoas vinham à porta para ver passar a máquina andante.
 A estrada era poeirenta.Tinha muitas covas e no Inverno o chão cheio de água, espirrava quem quer que fosse a passar, à beira da estrada. Não havia passeios, naturalmente. No Verão, o automóvel deixava um rasto de pó. Uma nuvem que se metia nos olhos. Nos pulmões… Sujava as casas da vizinhança. Era uma névoa cerrada durante algum tempo, pairando sobre os caminhos.

Havia uma ladeira à nossa porta. De quando em vez, o carro enguiçava. Paravam e davam a uma manivela para ele pegar e seguir viagem.

O carro azul-escuro, muito alto e com um tejadilho, do Senhor a Artur taxista, um senhor que viera de África, era o que passava mais vezes. O senhor Artur tinha uma grande cicatriz na cara. Participava nos grandes acontecimentos do povo. Era chamado para as  ocasiões especiais. Nos casamentos e baptizados vinha um só carro de aluguer, o único, o do Sr Artur que tinha um estatuto respeitável. Era ele que recebia o dinheirito amealhado com muito suor pelo pessoal do lugar.

De resto, a maioria das pessoas andava de bicicleta. A pé. Muitos tinham os pés cheios de côdeas por andarem sempre descalços.

Mais tarde vieram os ciclomotores. Era um luxo. Só o viveirista tinha uma bicicleta a motor. Fazia muito barulho. Na sua  passagem,deixava um mau cheiro, desagradável que ainda recordo. Era uma vaidade por “épater le bourgeois”,ter aquela bicicleta a motor. Enfim, dar assim nas vistas. O rasto ao passar  era uma fumaraça durante muito tempo.
Vias estreitas. Ladeadas de silvas. Cheias de buracos eram, na maioria, as estradas ao tempo.

Existiam para as cuidar, os cantoneiros, funcionários que vigiavam o arranjo possível das mesmas. Tapavam buracos e roçavam as silvas que cresciam nas margens.

Havia uma vigilância dura. Apertada sobre eles. O chefe dos cantoneiros, ainda com laivos de nobre e que por isso, só podia ser chefe (…), castigava-os severamente. Era muito temido. Respeitado. Passava muito direito.Não “dizia adeus” a ninguém. Sim, porque era hábito, todas as pessoas se saudarem ao passar umas pelas outras, quer fossem conhecidas ou desconhecidas. O chefe só  notava as coisas negativas. A admiração e o elogio pelo bom desempenho não existiam. O severo senhor empertigado poderia dar castigos e até despedir aquelas  pobres gentes. Humildes sem qualquer voz em defesa própria. 

Era criança, mas apercebia-me já destas  atitudes que amedrontavam tudo e todos.

Ser cantoneiro era prestigiante.
Uma honra a que muitos ou quase todos aspiravam. Eram uns senhores, apesar da dureza da vida. Quando iam aos bailes, as raparigas disputavam esses homens, que as poderiam poupar mais tarde, de andar ao sol nas duras faina agrícola.

Tinham um ordenado fixo. Eram funcionários do Estado. Um grande privilégio perante a escassez de recursos num meio pobre.
Usavam uma farda cinzenta semelhante à dos militares. Traziam um grande chapéu de abas largas também cinzento, com as armas do Estado na frente do chapéu.
Eram mesmo uma autoridade que podia “autoar” quem transgredisse no trânsito (…).

Eram menos agressivos. Temíveis. Mais amigáveis do que a Guarda Republicana, cujos membros pareciam escolhidos a dedo, pela sua crueza e rigidez. Era assustador, a Guarda Republicana sempre de espingarda ao ombro, ao passar um de cada lado, à beira da estrada, quando menos se esperava.
Multavam por tudo e por nada .Intervinham em tudo. Intimidavam tudo e todos sem apelo!
As pessoas diziam que nem a roupa queriam semelhante ao “cotim” das suas fardas cinzentas, com riscos verdes num chapéu redondo. Também lhe chamavam à socapa, “feijão-frade”.

Contavam os cantoneiros, o receio que tinham das francesas que na deserta estrada da Beira, os apanhavam para resolver os seus problemas mais urgentes (…)

Viajavam de automóvel duas francesas. Um dia na Fraga, apanharam um cantoneiro e quase o mataram…
Mataram por “amor”!
Obrigaram o cantoneiro a tomar um pó. Depois por gestos convidaram-no. Fizeram ambas sexo com ele, deixando-o derreado. Esgotado. “Quase deram cabo dele”, como usavam dizer por lá.

Daí que os cantoneiros espreitando se o chefe por lá vinha, quando se juntavam, pensando que as crianças nada percebiam, contavam com “respeito”, fazendo-se fortes, os perigos que corriam na mão dessas mulheres.
Na galhofa, mas cheios de medo pelos riscos que correriam, alguns comentavam os efeitos afrodisíacos do pó da cantárida, (talvez o antecedente do Viagra)… e que levou à condenação por assassínio, o Marquês de Sade ao utilizá-lo nas “suas” meninas.

Falavam também do cheiro da cânfora com efeitos contrários à virilidade do homem. Nós, os miúdos, registávamos tudo enquanto eles diziam: ” são miúdos. Não percebem nada do que estamos a dizer”…

Enfim, hoje no emaranhado das nossas muitas autoestradas, não há cantoneiros…

Há assaltantes que atravessam os carros, para matar e roubar. Se fingem mortos pedindo ajuda, para depois realizarem seus intentos.

Sexo? Não necessitam, pois ele abunda aos pontapés…Gratuitamente.

Assim vai a vida…E as  recordações que nunca se apagam…

Vou, mas fico espalhada no vento. Boas Memórias contam mais que presenças. Eu habito no amor de cada um e na espera pelo meu melhor.
  Lucinda Ferreira /25 Julho 2015