Viajar por dentro do tempo e do espaço...
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A lembrança da infância é o único sonho real que nos resta na fase madura
da vida, os demais são meras utopias.
Como cada dia é sempre dia de qualquer coisa, hoje para mim,
é o dia de RECORDAR..Viajar por dentro de mim em direcção a um espaço e a um tempo que só eu conheço.
Aprendi a falar menos, para escrever mais.Para dizer
a verdade, não me dá menos prazer…
No meu tempo de Criança não havia antibióticos.
Mal punha os pés no chão frio, ficava com anginas.
Um
febrão.Dores de cabeça e pontinhos brancos na garganta.
Uma tia velhota dava-me
uma zaragatoa sem piedade enquanto repetia: "É para ficares boa" e..tinha que aguentar.Pincelava com tintura de iodo que ardia e me fazia “ vomitar as tripas”!
Ficava quinze dias de cama, mas na cama de meus pais, de
dia. Era um direito que me era concedido por estar doente e poder ficar numa cama mais larga, com as minhas bonecas de
pano que eu fazia e com quem conversava imenso. Levava-as ao médico, à Escola...
Quando estava doente, a minha Mãe
fazia o sacrifício e comprava-me uma boneca de papelão.
( Um dia esqueci-me e deixei-a no pátio. Choveu de noite. De manhã a minha boneca estava desfeita. .Fiquei muito triste e chorei pela minha "filha".)
A Mãe escondia-a .Depois
dava-ma em ocasiões especiais, quando estava mais sofrida. Como era delicada e
sabia fazer surpresas…
A febre não baixava. Delirava. Sobretudo lá para a noite, a
febre subia muito. Parecia que muitos pássaros me picavam na cabeça…E ainda não
conhecia a história... Os Pássaros de Daphne Du Maurier sobre a qual em
1963, Alfred Hitchcock realizou o filme de suspense ainda hoje apreciado.
A minha Mãe querida era tudo na minha vida.Dona de casa,
trabalhadora dentro e fora de casa, e ainda era a minha enfermeira dedicada.
Lembro-me que me esfregava com álcool e isso me aliviava muito.A febre baixava.
Como as ideias surgem em cacho,
recordei hoje estes factos, ao ir às compras.Na realidade, os sentidos despoletam e dão-nos acesso às recordações. São os cheiros .Os sabores.O tacto.Os sons.As imagens...Neste caso, talvez reminiscência inconsciente tal como Marcel Proust ...À procura do tempo perdido...
Olhei para a pescada, marmotas, que costumo comprar à procura
daquele sabor que tinha o peixe com o primeiro feijão-verde e uma batatinha
nova dos nossos canteiros que eu ajudava a regar.
Quando estava doente, a Mãe comprava-me pescada á Senhora Ilda Peixeira, que vinha a Coimbra duas vezes por semana, comprar peixe fresco. Com
uma cesta à cabeça , que hoje não sei como se segurava tão direitinha, ia à nossa
porta vender.
O sabor daquela comida era tão especial que ainda continuo à procura dele, mas em vão…
Os cheiros e os sabores mudaram ou fui eu que mudei, mas
aquele gostinho nunca mais o consegui esquecer…Nem repetir.
Às vezes sozinha , tenho vontade de comer, mas não sei o que
hei-de cozinhar.Então recordo-me da comida simples de que tanto gostava e que a
minha mãe fazia sempre com muito amor . Aquela energia de disponibilidade e de
fazer sempre o seu melhor, são impossíveis de reconstruir até porque ela já não
está entre nós.E que saudades, Deus meu!
Quando vinha mais tarde para casa,porque andava por fora ao
serviço do Ministério da Educação de onde recebia o dinheiro para alimentar
toda a Família, ela estava sempre à minha espera.
Sentava-se ao meu lado, fosse a que hora fosse e esperava
que eu acabasse de comer. A comida estava sempre quentinha.
Um dia ela estava a cozinhar e nas minhas traquinices de
criança, toquei-lhe no braço que levava uma vasilha com água a ferver!
Queimou-me nas costas.Lembro-me de como eram horríveis
aquelas dores.
No Hospital local, mostravam-me um boneco, o Teimoso, para
me distrair e poderem espremer-me as “borbulhas”.Magoavam-me muito. O sangue saltava
para as batas brancas.Eu chorava assustada, cheia de medo!
Foi o meu Pai que escrevia as cartas e ajudava toda a gente
e sabia muito sobre mezinhas, que fez uma pomada caseira ( de que ainda sei os
ingredientes e a fórmula) e me curou.
Lembro-me ainda hoje da sensação de
frescura que aquele remédio caseiro me causava.
Tudo era natural e vinha da Mãe Natureza. Não tinham compressas
nem outros materiais.Desinfectavam tudo com álcool ou água a ferver.
Usavam uma
folhinha de uma erva chamada Língua de Vaca que cresce muito e come as outras
plantas. Há tempos, uma semente trazida pelo vento fez crescer uma dessas plantas
no meu jardim. Como a estimei e me lembrei como fora ela benéfica para mim.Reconheci-a.
Falei-lhe.Agradeci-lhe com amor!
Aliás ainda não lhes contei, mas beijo o aveludado das
minhas flores quando abrem.Converso com elas.No meu jardim há sempre algo a
florir…E como já disse há tempos,quem tem um Jardim e uma Biblioteca já nada mais
lhe falta!
Voltando à minha infância, recordo de como as “bichas” eram
um terror que me obrigava a tomar óleo de rícino, como purgante.
Para beber
aquela coisa péssima de engolir, tinham que me ameaçar com a Guarda Republicana
que me levava presa. Ficava assustada e quando depois mais tarde passavam lá à
porta ou os Ciganos ( De tempos a tempos passavam em carroças bandos de ciganos
e nós , as Crianças, tínhamos muito medo deles.Por vezes fixavam-se por lá uns
tempos e no início eram muito correctos , mas quando estavam para partir , “faziam
sempre das suas”), Nós, os mais pequenitos, escondíamo-nos…Debaixo da cama.
Quando estava mal da “barriga”, a Mãe levava-me à Senhora
Glória, uma senhora desdentada , com umas grandes argolas nas orelhas e que
morava na Cova do Cume.
Era muito boazinha para mim e tratava-me.Quando
voltava para casa já vinha boa.
Deitava-me de costas e com azeite morno esfregava-me a “barriga”com
movimentos circulares muito suaves que ainda hoje “sinto”.Lembro-me que ficava
muito aliviada. A Senhora Glória Também cortava o “cobrão” e “endireitava a "espinhela".
A minha Mãe aprendeu com ela e depois fazía-nos em casa quando
precisávamos , pois isto era extensivo aos adultos .
Minha Mãe, mais velha
sete anos do que o Pai, era muito amiga dele .Cuidava-o com todo o cuidado, pois
era mais saudável. Inteligente e muito sensível.
Minha Avó morrera de parto. O Pai morrera na guerra de Espanha…
A minha Mãe crescera muito desamparada.
Aprendeu a ler sozinha!
Ensinou outras
amigas a ler e a escrever.
Tínhamos sempre as jarras enfeitadas .Hoje recordo a graciosidade como armava um ramo, por intuição naturalmente.
Bordava muito bem.Os bordados eram a sua paixão.
Assinava revistas das quais ainda conservo algumas.
Amava os animais e as
plantas com uma deferência e carinho que me tocaram e me fizeram o que hoje
sou.
Agradeço por todas as vezes que me fez sorrir…Às vezes só
percebemos a importância de um momento, quando ele se torna apenas uma lembrança…
“Lembranças da infância são incomparáveis. São
experiências desejadas e vividas.Momentos de uma época das mais confortáveis.Estímulos
de amor para resto da vida.”Djalma
CMF
lusitano dos santos
ResponderEliminarAnexos21:56 (há 14 horas)
para mim
gostei muito. parabéns.