Textos e pretextos
a deusa da alegria ..img. net |
A rapariga da vara…
E o "sarrafo vermelho"
Ser austero é não saber esconder que se tem pena de
não ser amado. .Fernando Pessoa
Era o tempo em que a Natureza se
veste de verde.
Um verde orvalhado pelas gotas de chuva que brilham como pérolas quando o sol desponta.
De quando em vez , uma bátega de
água caía sobre os jardins agradecidos e as pessoas constrangidas.
Ou não fosse
Abril de águas mil.
Ela chegou ao colégio já a classe
cursava o terceiro período. Naquele tempo, após a quarta classe, havia um exame
de admissão ao Liceu.
Na primeira semana Maria integrou-se
facilmente. A professora logo se apercebeu das facilidades que revelava na
apreensão dos conhecimentos. Tudo isto com a maior simplicidade.
Cedo começou a ajudar as colegas
com mais dificuldades, a pedido da mestra. Ela até gostava . Tudo era natural. Já na sua escola, estava habituada a acabar os trabalhos antes das
outras alunas e a professora pedia-lhe para dar uma mãozinha à Mécia. À Helena.
À Júlia…
Nos trabalhos de casa , via as
contas das que tinham menos facilidade. Em troca, as colegas davam-lhe um
“Santinho” ou até fruta e outras ofertas de gratidão pelo trabalho prestado.
-Ó Maria , vês-me a minha conta
de dividir que eu dou-te um Santinho?
-Ó Maria, deixas-me copiar os
problemas que não fui capaz de fazer o trabalho de casa?
A Senhora dá-me uma reguada, se me chama e não
fiz isto.
O medo morava naqueles corações
pequeninos e aflitos.
Maria nunca dizia que não.
Como a professora tinha as
quatro classes e tinha que chegar a todos os alunos numa sala cheiinha, quando
passava no quadro o enunciado da conta e se copiava para a lousa, a aluna que
acabava primeiro , ia mostrar-lhe.
Por vezes quem acabava primeiro, levantava-se no lugar.
Aguardava que a Senhora lá fosse para não haver confusão na sala...
A menina que primeiro resolvera o
trabalho, ia depois de carteira em carteira, ver as contas das colegas.Havia
alunas que nunca conseguiam acertar.
-`Coisinha, perdoa-me a conta que
eu dou-te uma laranja.Um Santinho. Um postal…
Na maioria das vezes, o pedido
era atendido.
Quando o prazo expirava e se fazia a correcção no quadro, quem
não apresentara a conta feita antes e certa , levava umas tantas reguadas que
deixavam a mão vermelha e bem dolorida.
Algumas meninas choravam sempre.
Outras levavam todos os dias, até se habituavam. Quando voltavam para o lugar, sopravam nas mãozitas vermelhas.Magoadas.
Ficavam humilhadas.
Envergonhadas. Tornavam-se tímidas ou revoltadas e mázinhas, algumas delas..
O "sarrafo" vermelho era grosso!
No final, esgotado o tempo, a
correcção fazia-se no quadro. Todas conferiam.Viam onde é que tinham errado,
algumas.
Outras ficavam para trás.Para sempre.Chamavam-lhe com
crueldade, "burra"… Havia alcunhas ainda mais cruéis, tais como “a porca suja”.
Houve um tempo que de castigo tinham que se ajoelhar sobre milho. Trazer umas orelhas de burro, no recreio.
Já havia muita inveja. Raiva. Vinganças entre as crianças…
Revelavam-se ali modelos familiares.
Desenhavam-se assimetrias sociais marcantes.
Os que tinham dinheiro. Poder e orgulho e os mais pobres que levavam sempre pancada…A clivagem começava cedo logo na escola.
Havia da parte de algumas meninas
, normalmente filhas de comerciantes com mais posses,muita arrogância.
Sendo
menos dotadas , não perdoavam o desempenho rápido e fácil das mais
inteligentes.
Nos intervalos batiam-lhes.Acusavam injustamente essas colegas à
professora para apanharem com o "sarrafo "vermelho.Ficavam todas
contentes.Consoladas.Eram poderosas!
Na Escola, a professora escolhia
uma das mais velhas para ir para a frente da classe, ver quem estava a falar...Enquanto ocupada, ensinava a outra classe.Era o momento da maldade tomar forma.
-Fulana , vai ver quem está a
falar.-Ordenava a professora
Então uma das mais velhas.Gorda.Antipática.
Munida de uma grande vara que a mestra também usava para dar nas orelhas e na cabeça das
alunas, ficava à frente da classe.
As mais pequeninas ficavam cheias de medo.
Aí era a hora da vingança cruel .Injusta e mentirosa. A raiva e a inveja tinham oportunidade de se vingarem.
-Maria , vai à Senhora!
E pimba.Uma reguada com o "sarrafo" vermelho. Castigo imerecido.Cruel.A pequena assustada nem se mexia na
carteira.Nunca estava a falar.Era a melhor aluna. Esse era o seu crime. Nunca apanhou por não saber, então
:”Toma”!
-Vai à Senhora, outra vez!
Não havia apelo. A professora
estava muito ocupada . Não tinha
tempo a perder.A justiça ou injustiça do
castigo nunca a preocupava .Não tinha tempo para essas coisas menores (...).
E a aluna gorda de casaco castanho.
Comprido.Com uma gola às pintas a imitar a pele de pantera, aproveitava.Era a
hora da crueldade. Da vingança. Da inveja em acção, com todos os poderes do seu
lado! A lei do mais forte era o modelo social vigente.
O Soldado da Gestapo, "polícia
secreta do Estado".(1) estava ali bem representado na aparência e no
comportamento daquele espantalho temido e investido de autoridade.
Apontava o nome dessas meninas no quadro. No
final era o acerto de contas… Mais umas reguadas com a "sarrafo" vermelho.
Grosso.Impiedoso.
No início, as classes eram
separadas. As meninas ficavam todas numa sala com uma professora.
Do outro lado
do edifício, ficava a sala de aulas dos rapazes, dadas pelo Senhor
professor.
Um homem baixo.Sempre de gabardina. Chapéu preto.De voz metálica.Passava sempre com ar de poucos amigos, sem olhar para ninguém...Quando falava, o “caroço de Adão” muito
saliente, quase saltava do pescoço.Todos o temiam.
Havia num alpendre entre as duas
salas. Era proibido as meninas irem para o lado dos rapazes e os rapazes virem
para o lado das meninas.
Mais tarde houve um desdobramento
de classes. E coisa única, a classe agora era mista.
Aí havia um menino, o José
António, que quando a situação apertava, fazia “xixi” nas calças com medo…
A impiedade da criançada não
perdoava e ele sofria muito.Quando levava com o "sarrafo" vermelho, era uma ribeira
que corria sob a carteira.Toda a gente depois cá fora, lhe chamava o “Chorincas
e o Mijado”.Normalmente ele fugia.Escondia-se.
Maria lembra-se de todos os
pormenores como se um filme passasse à sua frente com uma exactidão impressionante.
Como se tivesse sido ontem.
Ou não fossem as leis da memória
fiéis aos acontecimentos mais recuados…
Maria seguiu o seu caminho com coragem e muito trabalho!
Compreendeu cedo que “O melhor modo de nos vingarmos é não nos assemelharmos a quem nos faz mal”
Compreendeu cedo que “O melhor modo de nos vingarmos é não nos assemelharmos a quem nos faz mal”
Foi esse o caminho que escolheu, ao longo de toda a sua vida.
Ao falarmos
com ela, diz se uma pessoa feliz!.
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Nota:“ A Gestapo nasceu em 1933 para esmagar a
oposição a Adolf Hitler e logo se transformou na peça central do terror
nazista. Com a ajuda de cidadãos comuns, a Gestapo vigiou, sequestrou, torturou
e executou milhares de pessoas”
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