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quinta-feira, 26 de novembro de 2009

À beira do Rio




À BEIRA RiO …
Enquanto a Mãe tricotava, o miúdo brincava com uma canita, na margem do rio
manso e calmo.
De repente, a cana prendeu-se!
A criança, com a curiosidade inocente de quem nada mais tem a fazer, que matar o
tempo que corre e imitar os crescidos, pescou primeiro... um sapato.
Toda a tarde a pescar e quando a cana prendeu, pensou ter pescado uma grande
truta... Um grande peixe dourado.
... Bom, era apenas um sapato velho!
... mas não desistiu e continuou a pescar. Prendeu-se a canita, outra vez.
Agora era um saco de viagem preto e vermelho.
Quis puxá-lo sozinho, mas não teve força.
Gritou então muito excitado e pediu ajuda à Mãe.
Quase tropeçava e era puxado para a corrente pelo peso enorme do “pescado”... É
que a corrente ía brava!
A Mãe, entre aflita e curiosa, correu a ajudar o pequeno.
Naquela tarde agradável de Primavera, com a terra perfumada, o céu azul e o rio
muito verde, era muito agradável aquele passeio já habitual à beira rio.
Nunca acontecera antes, nada de especial, mas hoje, um grande e bonito saco, ali
viera ter a seus pés.
Até era curioso o achado.
O saco sugeria viagens sem fim... Era tão jeitoso!
... mas, o saco estava tão pesado!
A corrente arrastava-o com alguma força e foi difícil pescá-lo.
... porém a curiosidade e o sabor de se ter um saco de ouro, que não era de ninguém,
e o sentimento de protecção para com o filhote, para lhe dar a vitória a Mãe a afzer
alguma força. Insistiu!
Por fim, lá veio o saco para a margem.
O pequenito apressado e curioso, insistia com persistência.
- Mamã, deixa-me abrir a mim!
Fui eu que o vi primeiro.
A Mãe sorriu com bonomia e deixou o menino satisfazer a curiosidade.
Mas... ó Deus! Que horror!...
Dentro do saco, estava... justamente um tronco de mulher.
... um tronco de mulher, vestido com um soutien vermelho.
“Que horror”! – repetia a Mãe, entre assustada e desconcertada com tal achado.
... o pequenito estupefacto só dizia
- Mamã, o que é isto?
- Mamã, Mamã, o que é?
Sem se conter, acaba por gritar.
- Cala-te! Cala-te! Cala-te!
Tentou depois dominar-se para acalmar a criança não menos assustada.
- Vamos embora João.
Deixa lá o saco.
A Mãe compra-te outro saco, ainda mais bonito.
O miúdo atónito, assustado, curioso e suspenso, deu a mão à Mãe e lá foram
embora... a correr.
Luisa foi pôr o filho a casa.
Pediu à Mãe que lho deixasse ficar um bocadinho com ela, que já voltava. Não deu
outras explicações.
Correu veloz para a polícia. Contou o sucedido.
Passado pouco tempo, o saco estava rodeado de muitos curiosos.
A notícia espalhava-se. Na pequena cidade alvoraçada, a notícia passava de boca em
boca.
Os mórbidos e doentios acorriam à beira rio.
Gostavam de ver com os próprios olhos.
Certificar-se daquela crueldade.
Teciam comentários. Conjecturavam.
... cada vez mais o estranho achado era motivo de comentários correndo de boca em
boca:
- ‘apareceram umas pernas de mulher dentro de uma mala, presa num salgueiro
do rio’.
Toda a gente muito assustada e indignada, esperava suspensa o deslindar da questão.
Bombeiros, polícias e militares procuravam sem descanso, o resto do corpo.
- É uma pouca vergonha.
- Estamos no fim do mundo.
- ... Já não há respeito por ninguém.
- Anda tudo fora da graça de Deus.
- Quem é que pode estar seguro?
Eram comentários que sussurravam no ar.
Por fim aparecia, numa outra mala de viagem, a cabeça de uma mulher jovem,
bonita.
Dava sinais de ter sido espetada no coração! Escoartejada.
- Crime passional?
- Ladroagem?
- Simples selvajaria?
- Ataque de loucura?
- Quem teria sido aquela infeliz rapariga?
- Qual o porquê de tão macabra sorte?
Dúvidas... hipóteses... pistas... sugestões surgiam na cabeça dos responsáveis pela
investigação.
Dois... três... quatro... cinco dias... uma semana, e a história seria deslindada.
O criminoso, um antigo militar dos comandos que servira na guerra colonial,
perdera a cabeça e...
... tinha sede de sangue!
... dava-lhe prazer afirmar o seu poder, deste modo.
... perdera a cabeça?
Ela era a sua segunda mulher.
Até “gostava” dela, à sua maneira. Dum modo sádico e egoísta, digamos.
... além do mais, não queria trabalhar. Vivia à custa da venda do corpo da sua
companheira.
- Até que a vida não ia nada mal... pensava para si mesmo.
Que raio lhe passara pela cabeça, para me chatear e dizer que me ia deixar?
A gaija vai saber o que lhe custa a proeza.
Não é para mim, mas também não será para outro cabrão – pensava o Júlio da Luisa,
conhecido no meio pelo estranho comportamento e visível agressividade .
Na noite anterior, tinham ralhado.
Insultavam-se muito com palavrões e barulhos esquisitos, confessaram mais tarde os
vizinhos.
- Aquilo eram só berros e gritos – diziam assustados.
- Era um casal enigmático. Ninguém ousava meter-se – “Entre Homem e
Mulher... ninguém meta a colher “ – diziam baixo, comentando entre si.
- Recordam de facto, que a partir de certa altura, caíra um grande silêncio, em
casa do Júlio e da Luisa...
A noite acabou por banhar todos, num sono profundo.
Luisa, essa então é que nunca mais acordaria!...
Entretanto Júlio, depois daquela operação violenta tinha que desfazer-se da
encomenda incómoda.
Depois de ter dormido calmamente o sono dos justos (?!!) acordava. Pensou então
que era melhor, viajar demanhã cedo.
Exactamente. Apanharia o primeiro combóio da manhã, quase vazio, habitualmente.
Às seis horas, as pessoas gozavam ainda o último sono da manhã...
Instalou-se sózinho, na última carruagem.
- Até calhava bem.
Quando passar na ponte sobre o rio, faria voar a encomenda... – pensava
calmamente, Júlio para si próprio.
Se bem o pensou melhor o fez.
Livrou-se depressa do mono que não mais o aborreceria. Naquele dia até
ficaria mais leve.
Ultimamente, Luisa andava adoentada. Parecia uma carraça.
... e o pior, é que trazia menos dinheiro para casa.
- Já não saboreava um bom bife e um bom vinho De marca há uma semana!
- Tenho que mudar de pega, que esta está a ficar fanada – pensava Júlio.
Naquele dia, pelo menos, tiraria a barriga de misérias.
Jantaria cabrito... bom vinho e o que surgisse no momento.
E não seria num ‘Mijacão’ qualquer. Seria num restaurante de gente fina!
... Um príncipe em festa.
Com o dinheiro no prego dos brincos, do relójio e do fio de Luisa, não faltaria
mesmo nada.
No fim, dava uma volta e toca de arranjar outro ‘cabide’.
- Aquela já lá vai e... não chateia mais – pensava para si.
- Mas a verdade, é que agora começava a incomodá-lo. A joelhada que ela lhe
dera nas ‘partes fracas’... ao tentar defender-se.
- A cabra, sabia-a toda.
... e agora esta merda está-me a doer cada vez mais – pensava Júlio.
Começou a prender-lhe a perna. Não conseguia andar com a dor cada vez mais forte.
- Agora é que estou quilhado – dizia para si.
Enquanto estive sentado, só uma dorzita, mas agora está a ficar fusco.
Parece impossível um gajo como eu, que arranquei e cortei tantas orelhas aos pretos,
com eles aos berros... etc... etc... etc...
Tanto filho da mãe que torturei até à morte e nada me aconteceu.
Um gajo mete-se com cada cabrona! Leva assim uma joelhada nos tomates... e agora
que vou fazer com esta porra tão inchada?!...
- Sentou-se no jardim. A coisa piorou. Foi aumentando.
Torcia-se com dores!
Rangia os dentes. Acabou por desmaiar de dor...
O polícia do giro, viu aquela criatura caída.
Não o conhecia. Viu no entanto, uma tatuagem de guerra colonial, na mão subindo
pelo braço já meio descoberto.
Apressou-se a chamar a ambulância que pouco demorara.
Levaram o cidadão sempre inconsciente para o hospital.
A equipa de serviço observou o paciente. Logo foi diagnosticada a pancada.
A cidade continuava desperta e... assustada!
O retracto reconstruído de Luisa, já circulava nos jornais.
Afinal o jornal diário da cidade, até primava por dar relevo a situações insólitas...
Toda a gente comentava o facto... o estranho e entranhado achado do saco intrigava
e assustava o povo pacato duma pequena e calma cidade de interior.
O Natal como o ‘diabo tem sempre uma mão com que esconde e outra que mostra’,
a vida também tem sempre uma parte oculta e outra descoberta!
No bolso do casaco do doente, chegado inconsciente, ao hospital, havia alguns
papéis engordurados e calendários com mulheres nuas e... outras preciosidades...
Entre a papelada , encontravam-se dois bilhetes de identidade. Um deles, com foto
de Mulher!!!
Então alguém, alertou imediatamente:
- Esta foto é semelhante à da mulher assassinada que vimos no jornal, não vos
parece?
- Toda a gente correra, para confirmar, negar ou satisfazer a curiosidade.
Entretanto, alguém alertara a polícia que de imediato levantada a ponta do véu
investigava até aos últimos pormenores, toda a situação.
O doente ia recuperando aos poucos...
... agora o resto, já não era só com o hospital e os cuidados médicos...
... agora o resto era com os homens do crime, habituados à pesquisa e à insistência
para apuro da verdade.
Nem terá sido preciso grande trabalho neste caso, certamente.
Não sabemos.
Só sabemos que mais tarde, ao tratarmos de assuntos de natureza social, num
determinado estabelecimento prisional, alguém nos mostrava um homem de meia
idade, que ria e fumava animadamente atrás de uma grande grade...
- ... ao menos ali, tinha quem o entendesse.
Até se aprende aqui uns truques.
Um gajo aqui não se preocupa mesmo com nada para viver. Tem comida... roupa
lavada... televisão...
... e se for preciso, faz-se greve... faz-se uma revolta... dá-se um tiro nos cornos do
polícia – comentavam certamente entre si os presidiários, conforme confessam
quando saem...
- Só falta serem tomados ao ombros, como salvadores da Pátria... uns ‘Heróis’.
Ou então como nos contaram, que dizia um advogado muito empenhado em pôr na
rua, toda a espécie de malfeitores:
- Quando vou para o julgamento, já sei que todos serão absolvidos...
O Juiz já tem com ele passagem e hotel pagos, para oito dias no Rio de
Janeiro... Êxito assegurado.
- Exagero deste diz-se, diz-se... acrescentamos nós.
- Coitados destes gajos que andaram na guerra colonial.
Ficaram todos ‘apanhados’ e marcados, pela violência...
- Ficaram é apanhados da moca – comentavam algumas pessoas que ainda se
recordavam do macabro acontecimento da mala e da rapariga assassinada e
cortada aos bocados...
- Há quem afirme que os mecanismos mentais desses ex-combatentes, ficam
muito perturbados para sempre...
Foi assim, que o João nunca mais quis ir com a Mãe brincar, à beira do rio...
... nem sequer quer ser curioso a abrir sacos... Tem medo. Muito medo!
... A Mãe, essa até se arrepia toda, quando se fala no saco vermelho e preto, que o
João pescou à beira do rio, uma tarde morna de Primavera.
Lucinda Ferreira

1 comentário:

  1. A mulher é amaior inimiga da mulher.
    Exceptuam-se os namorados ciumentos que matam mesmo as namoradas...

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